Chegou-me de sapatos cambados, com roupa que já vira
muitos melhores dias, mais alta e mais nova do que eu, talvez na casa dos
trinta, olhos nos olhos, sem tibiezas, portuguesa.
Que sim, já estivera empregada, sabia cozinhar e fazia
tudo o que era necessário numa casa, não tinha referências para dar por a
empresa onde trabalhara ter falido. O fundo de desemprego tinha acabado e este
tipo de trabalho era a sua última esperança. Ficou contratada.
De início, não passava dos bons dias e até amanhã, também
pouco nos víamos, eu entrava e ela saía, mas era muito competente em tudo o que
fazia. A casa bem arrumada, muito melhor do que se fosse eu e cozinhava
lindamente, o que era uma surpresa pela idade que tinha.
Adoeci e tivemos uns dias para irmos conversando, com calma, muita calma.
Era casada, tinha dois filhos e tivera uma casa de quatro assoalhadas.
Eram de Évora e tinham-se conhecido na cantina da faculdade de Lisboa.
Ele era diplomado
em Direito e enveredara pelo contencioso de uma empresa, que tinha falido. No
tempo que durou o fundo de desemprego não conseguira arranjar trabalho na sua
área. Estava ao balcão de num café e recebia o ordenado mínimo. Ela escolhera
Literatura Portuguesa e era diplomada, fora professora, mas desde 2012 que não
conseguia colocação, como tantos outras/os.
Perderam a casa, e viviam os quatro num quarto alugado
com acesso à cozinha. Dizia que a senhoria era boa pessoa que como a pensão não
lhe chegava alugara aquele quarto, também os deixava ficar na sala a ver televisão. O quarto era bom com boa área e varanda por ser numa das
casas antigas de Lisboa. Tivera muita sorte, dizia.
Teve sorte, depois de ter perdido a casa e os empregos.
Que país é este em que diplomados acham que é sorte, um estar empregado num café e, a outra como empregada doméstica porque ganha mais do que o ordenado mínimo. Que país é este em que é sorte viver com o marido e dois filhos num quarto alugado, com uma senhoria que é boa pessoa, depois de se ter perdido a casa e todo o dinheiro que se gastou a pagá-la.
Teve sorte, depois de ter perdido a casa e os empregos.
Que país é este em que diplomados acham que é sorte, um estar empregado num café e, a outra como empregada doméstica porque ganha mais do que o ordenado mínimo. Que país é este em que é sorte viver com o marido e dois filhos num quarto alugado, com uma senhoria que é boa pessoa, depois de se ter perdido a casa e todo o dinheiro que se gastou a pagá-la.
Tive sorte na sorte dela e isso deixa-me inquieta,
revoltada, infeliz na minha sorte.
Fico à espera que este país me faça perder a fada do lar,
que me faça ter azar
6 comments:
Infelizmente duvido que a sorte dela mude.
Mas cada vez mais encontro gente que se dá por sortuda apenas por ter um tecto e comida, pouco importando o tecto ou o que come. E, como a tua fada do lar, não é gente que não tenha qualificações ou falta de vontade de trabalhar. País triste, este em que vivemos... :-(
Nos tempos mais próximos não vão melhorar e depois....há mais novos a candidatarem-se aos empregos.
Talvez emigrem
Há quem aceite tudo o que lhe calha na rifa e quem nunca consiga estar onde está, ser o que é...
Isso é verdade, mas não percebo o comentário em relação ao que está escrito. O defeito deve ser meu.
se fosse ficção doía, mas dói ainda mais pois este é apenas um caso ao acaso das várias histórias deste género...
abraço e um
beijo
:(
Exactamente.
Beijo :)
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