29.7.15

Fada do lar

  
                                                                          @Grosz


Chegou-me de sapatos cambados, com roupa que já vira muitos melhores dias, mais alta e mais nova do que eu, talvez na casa dos trinta, olhos nos olhos, sem tibiezas, portuguesa.
Que sim, já estivera empregada, sabia cozinhar e fazia tudo o que era necessário numa casa, não tinha referências para dar por a empresa onde trabalhara ter falido. O fundo de desemprego tinha acabado e este tipo de trabalho era a sua última esperança. Ficou contratada.

De início, não passava dos bons dias e até amanhã, também pouco nos víamos, eu entrava e ela saía, mas era muito competente em tudo o que fazia. A casa bem arrumada, muito melhor do que se fosse eu e cozinhava lindamente, o que era uma surpresa pela idade que tinha.
Adoeci e tivemos uns dias para irmos conversando, com calma, muita calma.

Era casada, tinha dois filhos e tivera uma casa de quatro assoalhadas. Eram de Évora e tinham-se conhecido na cantina da faculdade de Lisboa.
  Ele era diplomado em Direito e enveredara pelo contencioso de uma empresa, que tinha falido. No tempo que durou o fundo de desemprego não conseguira arranjar trabalho na sua área. Estava ao balcão de num café e recebia o ordenado mínimo. Ela escolhera Literatura Portuguesa e era diplomada, fora professora, mas desde 2012 que não conseguia colocação, como tantos outras/os.

Perderam a casa, e viviam os quatro num quarto alugado com acesso à cozinha. Dizia que a senhoria era boa pessoa que como a pensão não lhe chegava alugara aquele quarto, também os deixava ficar na sala a ver televisão. O quarto era bom com boa área e varanda por ser numa das casas antigas de Lisboa. Tivera muita sorte, dizia.
Teve sorte, depois de ter perdido a casa e os empregos.

Que país é este em que diplomados acham que é sorte, um estar empregado num café e, a outra como empregada doméstica porque ganha mais do que o ordenado mínimo. Que país é este em que é sorte viver com o marido e dois filhos num quarto alugado, com uma senhoria que é boa pessoa, depois de se ter perdido a casa e todo o dinheiro que se gastou a pagá-la.

Tive sorte na sorte dela e isso deixa-me inquieta, revoltada, infeliz na minha sorte.
Fico à espera que este país me faça perder a fada do lar, que me faça ter azar


6 comments:

Maria Alfacinha said...

Infelizmente duvido que a sorte dela mude.
Mas cada vez mais encontro gente que se dá por sortuda apenas por ter um tecto e comida, pouco importando o tecto ou o que come. E, como a tua fada do lar, não é gente que não tenha qualificações ou falta de vontade de trabalhar. País triste, este em que vivemos... :-(

inconfessável said...

Nos tempos mais próximos não vão melhorar e depois....há mais novos a candidatarem-se aos empregos.
Talvez emigrem

Luis Eme said...

Há quem aceite tudo o que lhe calha na rifa e quem nunca consiga estar onde está, ser o que é...

inconfessável said...

Isso é verdade, mas não percebo o comentário em relação ao que está escrito. O defeito deve ser meu.

© Piedade Araújo Sol (Pity) said...

se fosse ficção doía, mas dói ainda mais pois este é apenas um caso ao acaso das várias histórias deste género...

abraço e um

beijo

:(

inconfessável said...

Exactamente.
Beijo :)