14.4.19

Violência


Tem bom coração. No fundo é bom, tem aqueles ataques de loucura, mas no fundo é boa pessoa.
Não foi assim educado. Não? Houve sempre tanta violência em casa.
É um filho da mãe do pior.

A dualidade existiu muito para lá do razoável.
Difícil a condenação sem perdão, que não houve, até um dia. Atenuantes, sim. Sem explicação.
Era alcoólico, mentiroso, mau carácter, vigarista, sem honra.
Era o irmão que mais gostava, o outro já tinha morrido.

Na véspera, tínhamos combinado ir ao cinema, mas o telefone, nesse dia, não era atendido e resolvemos passar pela casa deles, não fosse ter a conta por pagar.
Quando nos viu ficou atarantado.
Que a mulher estava deitada com uma enxaqueca, não podiam ir ao cinema...mas quis vê-la.
O quarto estava na semi-obscuridade, ela tapada até ao queixo. Sentei-me na beira da cama, os olhos a habituarem-se à penumbra, enquanto lhe perguntava como se sentia. Foi quando respondeu que lhe doía o corpo todo que vi a cara toda negra e num repelão puxei o lençol para trás.
O corpo dela tinha sangue pisado por todo o lado. Chorava envergonhada.
Ela estava envergonhada, céus e eu numa fúria descontrolada, estava tão mas tão envergonhada, por ele, por mim, por o ter como irmão, por não conseguir voltar-lhe as costas definitivamente.

Essa dualidade existiu durante muitos anos, demasiados anos, até um dia.
Então houve o corte, sem apelo nem agravo.

11.1.19

Dos judeus

Nunca lera Richard Zimler. Um certo mal estar, Zimler é nome de judeu e há muito que não quero ler, nem ver nada sobre judeus nem sobre a Segunda Guerra Mundial e quando falo na Guerra falo também em Hitler, nazismo, suásticas. Não me consigo distanciar, estou no meio da acção em livros ou filmes, sei o que vem a seguir, sei tudo, provocam-me pesadelos durante noites, durante o dia revejo os pesadelos, não quero descer ao horror.
 Houve uma excepção com o ‘Saving Private Ryan’, o realismo do peixe esventrado atirou-me contra a cadeira do cinema e distanciei-me finalmente.
Não quis ver o menino do pijama, nem a lista de Schindler, livros nem pensar ainda são piores, as descrições magoam e o imaginário vai por ali fora.

A minha avó Chica e o meu tio Jorge falaram-me sobre a inquisição, das fogueiras, do assassinato de judeus, segundo eles, no Largo de São Domingos, não no Rossio, mas no Largo de São Domingos, do holocausto, da República, do seu começo e embora me avisassem que umas coisas tinham sido antes das outras, não sei que idade tinha, mas o tio Jorge morreu quando tinha dez anos, era ainda mais nova e o ‘antes’ eram alguns anos anteriores à República, os acontecimentos sucediam-se, não havia diferenças de quatrocentos anos. Mais tarde aprenderia as datas.

Eles detestavam a inquisição, foi-me passado muito cedo esse horror tal como a matança no largo de São Domingos, milhares, para mim cem era uma imensidade milhares era o infinito, de queimados, estropiados, perseguidos, os padres, mas a minha avó e o meu tio era católicos, apostólicos romanos e salazaristas, que o senhor viera pôr ordem na casa, que isto de um presidente a cada ano e tiros na rua não podia continuar, mas apesar de salazaristas, incongruências, inculcaram-me a noção de justiça, que perseguições, fossem elas religiosas, políticas ou de raças, eram inaceitáveis.
Quando ardeu a Igreja de São Domingos, tinha onze anos, a minha avó quando ouviu a notícia no noticiário da RTP, comentou acre, quem com fogo mata, com fogo morre, mas demorou até se fazer justiça.
Olhei-a aparvalhada, era uma sentença muito forte, era ferro e não fogo e se até lá ia rezar...pelos que mataram no fogo, foi a resposta ríspida.
Teria a minha avó origens judaicas? Não faço a mínima ideia e, como sabem, as árvores genealógicas, quando as há, não falam em judeus nem em negros.

Eram republicanos, ah, a minha avó era republicana apesar de ter casado com um senhor com título nobiliárquico, republicana dos quatro costados, tal como o pai dela que, apesar disso, escondeu na sua casa padres e freiras perseguidos pela República, como o fizera, pouco tempo antes, a alguns amigos republicanos no tempo da monarquia.

Em casa, às refeições, quando havia discussões políticas arranjava maneira de cuspir a inquisição, a monarquia, o holocausto, Salazar, o meu pai e o meu irmão João alinhavam ou alinhava eu com eles, do outro lado a minha mãe e o meu irmão mais velho, dos mais novos não reza a história, por serem muito novos, ouviam e calavam. Mais tarde percebi que se inclinaram, sem apelo nem agravo, para o lado da minha mãe.

Como ia dizendo, nunca lera Richard Zimler e fiquei admirada quando o ouvi dizer na televisão que nenhum dos seus conhecidos alguma vez ouvira falar do pogrom, esta palavra também foi a primeira vez que a ouvi, mas da matança, ninguém ouvira falar? Se a minha avó sabia, se o meu tio Jorge sabia, se até eu sabia, todas as pessoas sabiam. Que coisa, ninguém ouviu falar da matança de judeus no Rossio ou no Largo de São Domingos, antes dos livros de Zimler?
Agora li quatro de seguida. Gostei muito, mas demorei bastante tempo com ‘O último cabalista de Lisboa’, pegava largava tive pesadelos, apesar da grande compaixão que trespassa o livro, na minha opinião, foi horrível. ‘A sétima porta’ foi outro inferno. Gostei muito dos quatro.
Não sei se quero voltar a ler sobre judeus e, ou nazismo.,