27.7.15

Olho em volta,

                                                                     @Vanessa Bueno



duas camas pobres com lençóis puídos e colchas que já viram melhores dias, uma mesinha de cabeceira no meio e quatro paredes brancas. O quarto é tão despido que o frio me entra no corpo apesar do calor que faz. Tudo me é estranho e não conheço ninguém, mas é aqui que vou viver se calhar até morrer. Foi aqui que me depositaram depois de ter ido fazer queixa à polícia.

Estou zangada, estou revoltada, estou desfeita, estou sem nada.

Tenho cinquenta e três anos, dois filhos emigrados e casei-me com o Álvaro com dezoito anos. Trinta e cinco anos a tratar da casa, dos filhos, que sempre foram a minha alegria, e dele, e a trabalhar fora como qualquer outra mulher.

Trinta e cinco anos a ser sovada. Tantas vezes que equacionei uma fuga, mas para onde, com as crianças, com a certeza de não arranjar emprego onde o ordenado chegasse para lhes dar um tecto. Por isso  os filhos eram a desculpa. Eles cresceram, saíram cedo de casa e eu continuei. Não sei porquê, sinceramente.

Só acordei quando o Hélder se veio despedir, quando foi para a Suíça, e avisou de que nunca mais viria visitar-me por já não aguentar ver-me a sofrer sem nada fazer. Seis meses depois partiu a Filipa.
 Deixei-o depois da última sova em que, mais uma vez, me pontapeou quando estava estendida no chão e fui à polícia pedir ajuda.

É verdade que já não sou batida. Mas sou eu, a vítima, que tive de deixar a casa, a terra, o emprego, as poucas amigas e ele o agressor, de tantos e tantos anos, fica no bem bom, fica com tudo. Que justiça é esta?

Estou revoltada, estou zangada, estou sem nada e desfeita.


Agradeço à Maria Alfacinha ter-me relembrado como fico raivosa com a legislação existente

3 comments:

Maria Alfacinha said...

Com a legislação e com o encolher de ombros fatalista com que tantas vezes me deparo.
A verdade é mesmo essa: a vítima é que tem que largar tudo e mesmo assim nunca mais se sente segura.
(e de repente surge-me, tipo banda sonora, os Abba e "The winner takes it all")

inconfessável said...

Será que não há legisladorAS? as leis dos homens são sempre para se defenderem.

Maria Alfacinha said...

Presumo que sim, não faço a minima ideia.
Só espero é que não tornem a Isilda Pegado, uma delas...