1.9.15

Coelho molho de vilão



Era um ritual que começava todos os anos a 1 de Setembro. A primeira vez dissera-me, como quem conta um segredo, vamos ali à copa para eu te ensinar a ser alquimista. Nunca tinha ouvido a palavra e perguntei-lhe o que queria dizer, ser alquimista é fazer alquimia. Insisti em que não sabia o significado da palavra, alquimia é transformar algo estragado, ou que parece já não prestar, em qualquer coisa muito boa, é simples mas é preciso ter paciência.
Em cima da bancada de madeira, estavam quatro garrafas alinhadas que na véspera tinham sido lavadas e bem secas pela Maria. Introduzira-lhes um pano fino de linho com a ajuda de um arame e rodara, rodara, até não haver nem um pouco de humidade.
A minha avó pôs um funil de ‘folha’ em cada uma, em cada funil um filtro de papel que encheu até meio com um pó negro, carvão vegetal. Abriu uma garrafa de vinho tinto e deitou com cuidado, para que o filtro de papel não rasgasse, uma porção que teria de ficar acima do carvão vegetal. Virou as costas e foi-se embora e eu fiquei ali, encostada à bancada de madeira, a olhar para as quatro garrafas à espera da tal alquimia, mas nada acontecia.
No dia seguinte, fomos olhar para as garrafas que tinham no fundo um pouco de líquido escuro. Olhei para a minha avó com ar desiludido. Agora pomos mais deste vinho azedo, feito pelo teu avô há mais de vinte anos, até as garrafas ficarem cheias de líquido. Depois recomeçamos o processo e lá para o fim do mês teremos um óptimo vinagre branco. Eu disse-te que tinhas de ter paciência se quiseres vir a ser uma boa alquimista.
Abriram-se várias garrafas do vinho do avô que eu não chegara a conhecer. Depois do carvão vegetal já estar impregnado, o processo tornou-se ligeiramente mais rápido e tanto de manhã como de tarde tinha de se acrescentar mais vinho para o nível estar sempre acima do carvão.
Foi já com o novo vinagre branco que no dia 29 de Setembro foi temperado o coelho de vilão que se fizera para os anos da minha prima. Orgulhosa, perguntei à avó se já era uma boa alquimista. Fez-me uma festa na cabeça e disse-me com ar terno, precisas de saber mais alguns processos para poderes vir a ser uma boa alquimista, mas não te esqueças que é necessária muita paciência e amor.
Tinha dezassete anos quando a minha avó me disse que aquele seria o último ano em que faria vinagre. Olhei-a assustada, andava mais curvada e cansada, no Inverno tivera uma forte pneumonia, recuperara mal, mas a avó acrescentou em tom leve são as últimas garrafas que tenho do ano em que o vinho tinto não teve grau suficiente para se poder guardar e o teu avô deixou-o azedar.
Fiz vinagre durante onze anos e tenho saudades

8 comments:

© Piedade Araújo Sol (Pity) said...

ai que delícia de texto...

gostei muito!

:)

mfc said...

Um texto lindamente composto que evoca memórias lindas e muito sentidas.
Li-o com um sorriso enorme.

Anonymous said...

A leveza de um texto que agrada à primeira leitura.

inconfessável said...

Ai que conseguiram comover-me.

inconfessável said...

Obrigada Piedade
Eu gostei de relembrar.
beijo

inconfessável said...

Adorava esta minha avó, mfc
Enquanto eu tiver memórias ela viverá, depois é capaz de ser o fim.
Beijinho

inconfessável said...

Não sou escritora, alinho umas frases que às vezes saem bem, Observador.
A minha avó tinha uma leveza única, mesmo quando a vida não lhe corria bem.
Essa marca ficou-me...apenas na memória, infelizmente :)

Maria Alfacinha said...

Eu também quero ser alquimista. Ensinas-me?